a million parachutes

for us

31 dezembro 2003

:: mensagem

"A noite/1

Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta.

Eduardo Galeano

(ME DÁ A IMPRESSÃO QUE FOI VC QUE ESCREVEU! ESTRANHO ISSO...)"

encontrei esse email da mariana entre arquivos txt que uso como anotações. na época eu guardava muita coisa que hoje posso jogar sem nenhum receio ou ressentimento na lixeira. a mariana é uma dessas amigas que interpreta as coisas de maneiras surpreendentes; para o bem ou para o mal.

fiquei feliz quando ela me mandou essa mensagem. ser lembrado através de um texto do eduardo galeano é uma grande honra para mim que adoro suas crônicas. há uma em especial que me comoveu deveras: era sobre um garoto que visitava a praia pela primeira vez. ele estava tão surpreso, excitado, feliz que só pode dizer ao seu pai: "me ajuda, me ajuda a olhar!".

para mim as linhas enviadas contém alguns temas que me perseguem. fico feliz de compartilhar isso com a mariana. ela mesma é um tema que me persegue. durmo com uma respiração melhor. não tenho uma mulher atravessando minhas pálpebras ou impedindo que fale. elas foram todas para casa.

:: sabrina

é o último dia do ano e sabrina está só. não quer ir para avenida cantar nos shows. não quer ir a praia ver os fogos. não recorrerá a bebida para dormir. ficará no telhado, esperando o ano novo abrir suas asas para abrigá-la com todas as promessas de fortuna. na polônia há talvez quem a ame. em são paulo há muitos que nem se importam. sabrina deixou de fumar no último dia do ano.

ela tem cabelos curtos e o ano os fará longos. ela tem olheiras e o ano a fará bela. ela não ama ninguém e o ano lhe trará amores. ela deixou de escrever versos e o ano novo a fará musa de poeta de botequim. ela não vai contar os dias e o ano a vencerá por cansaço.

sabrina é uma dessas: vai atravessar o ano feliz para cacete achando que não.

30 dezembro 2003

:: =)

pois é. ela ama aquele garoto estúpido.

29 dezembro 2003

:: de repente não mais que de repente

de repente me deu um medo dessas pessoas esperançosas. possuem esse sorriso de linhas e não de dentes. pequenos guerrilheiros da rotina. e me ocorreu que realmente podem mudar o mundo. e talvez estejam mudando só que os tempos e os sincronismos são diferentes e não se percebe bem.

não lutam, resistem com pequenas táticas. inventam palavras, fazem novos links, amam cada vez mais.

de repente me ocorreu que elas me cercam e sugerem. e tudo que posso oferecer é um post.



28 dezembro 2003

:: soundtrack

eu ouvia "casa de praia" da banda casino dando pulos no quarto. cantava junto coisas que gostaria de dizer para algumas pessoas. fechava os olhos segurando algum choro que pudesse vir -- desses repentinos que nos tomam e vai nos multilando aos poucos. acho provável que todas as pessoas já foram acomedidas por esses momentos que é muito semelhante a felicidade (se já não considermos como).

a cereja disse uma coisa boa: "tudo que é um pouquinho sincero me toca". a vida é um monte de cenas ridículas com boas trilhas sonoras.

27 dezembro 2003

:: melancolia _ ludov

Saiu de mim
a melancolia
já me deixou
já não choro um dia
pelo seu amor que eu perdi

meu amor
já me deixou
saiu de mim

O que restou?
Na escrivaninha
um retrato já amarelou
e na sala junto à cozinha
um bilhete em uma porta diz:

"Meu amor,
já volto já,
seja feliz"


O que dizer?
Se toda alegria
foi pouca pra dissolver
a monotonia
Já que tudo o que eu podia eu fiz

Meu amor
foi bom tentar
foi por um triz.


(italico do parachutes)
:: 1/4 do mundo

você está sozinha
num apartamento que é 1/4 do mundo.
há contas para pagar,
roupas para lavar,
livros inacabados
(você os conhece bem),
e não pode aumentar o volume
das suas músicas preferidas por agora.

provavelmente, ele não vai te ligar
para convidar para um sorvete.
não vai te pedir em casamento
ou reclamar sobre o seu cabelo novo.

sua mãe vai insistir nos valores,
seu paí, no futuro.
há ainda os amigos que ligam
de quando em quando perguntando se está bem.
você está sozinha, mas está bem sim.
há achocolatados na dispensa
e um cem número de músicas que ainda não ouviu.
há tempo de comprar cortinas
e passar na loja de animais
para saciar o desejo de ter um cão.

deixará espalhadas pelo chão as suas coisas,
num momento a tarde,
quando prestará atenção ao coração
que segurará com delicadeza
como quem pode amar bem e direito
quase sempre.
:: livros infantis

houve um tempo em que eu estava disposto a largar tudo para me dedicar a escrever livros infantis. era a época em que muitos dos meus amigos estavam casando e tendo filhos. todos me passavam esse sentimento nobre de paternidade, de um pertencimento na ordem natural das coisas, na incondicionabilidade do fato de ser pai e/ou filho.

nunca pensei seriamente em ter um filho. uma criança para mim sempre soou muita responsabilidade e nunca me achei maduro o suficiente. mas também nunca vi nos olhos dos meus amigos a maturidade que julgava ser necessária, mas mesmo assim cumpriram e cumprem com méritos os papéis designados. eu que não sei fazer papel de homem sábio, talvez por não ser pai.

inventei essa natália brincamar. uma menina que sonha. na verdade, uma menina que não tem definido ainda a fina linha dos desejos, inventividade e o mundo real, concreto. pensei em lhe dar um saga, mas sempre me ocorria que talvez quisesse apenas um balão. então pensei na saga de um balão... livros infantis são difíceis! e abandonei esta empresa por falta de competência. os livros para as crianças devem ser sinceros, mesmo quando muito mentirosos.

essa natália brincamar diria: mas os de adultos também não deveriam? e lá fico eu com cara de bobo porque também não sei a resposta.

26 dezembro 2003

:: timemachine box

fotos novas para caixas velhas de sapatos. evitava colocar datas nas fotos para preservar a imagem, mas agora essa informação me faz falta. há muitas imagens e lembranças e pouco contexto. é um aprendizado: datar o que pensávamos ser atemporal. os anos passam, o amor passa.

penso em comprar caixas mais adequadas a essa tarefa de manutenção do envelhecimento. no avesso das fotos novos vão além da data, o lugar e anotações a mais como diálogos ou pensamentos. troco a minha memória pela memória das fotos. faço com resignação, não amarei tanto a ponto de lembrar tudo.

encontro, então, essa foto. era uma pessoa que me foi próxima por um curto espaço de tempo. não me lembro do seu nome. me foi próxima e não lembro o nome. fico constrangido. provavelmente, quando tirei a foto achei que não era necessário que lembrasse, afinal, era muito viva. lembro-me dessa vivência. revisitando essa foto, emociona-me o seu cabelo e sua sobrancelha e me sinto feliz ao lembrar que era a sobrancelha e o cabelo que me chamaram a atenção pela primeira vez.

talvez a tivesse amado. quem se lembrava do amor naqueles tempos difíceis? penso se ela se lembraria de mim se também tivesse ela o hábito de escrever datas e outras informações nas fotos.

na certa, ela deveria ter uma dessas timemachine box, mas não tenho anotação alguma se ela tinha uma câmera.
:: algum natal

penso que deveria estar com um conhaque ou vinho na minha mão enquanto lembro de outros natais, dias que poderiam se assemelhar a natais como quando fui supreendido por amigos com presentes e saudações. era uma despedida. ouço com teimosia "summertime" em versões diversas tentando encontrar o ponto de inflexão que faz dessas uma das canções mais tristes e mais esperançosas que já ouvi. é como acho que o natal deveria ser. penso nos olhos cansados, pedindo apenas descanso. nada de dinheiro, amor ou felicidade. apenas descanso.

e revejo todos os filmes próprios dessa época. torço para que lembrem do capra e seu "a felicidade não se compra". há uma cena que me emociona toda vez que revejo: o protagonista quando pequeno perde a audição de um dos ouvidos. a menina que é apaixonada por ele sussurra em seu ouvido surdo que o ama. ele não ouve ou ouve e não percebe, não reconhece, não tem consciência. os outros filmes não tem essa surdez e esse golpe sujo. e a maioria tem cores, a "felicidade", não.

é uma época que muitos não suportam. é um monte de amor acumulado sendo desenfreadamente expelido e explicitamente. me incomodo com tanta gratuidade e o uso comercial dessa fraqueza forte dos homens. mas com esse vinho imaginário penso que talvez seja necessário. vivemos um tempo de amores arrebatadores, quase não há lugar para esses mais singelos, tímidos e contidos. esses de lágrimas e não de choradeiras. ou tempos sem nenhum amor. tempos de discursos amorosos sem fundamentos. amor por falar. amor por amor. amor sem quem amar. amor sem que nos ame.

imagino quais são minhas faltas e meus exageros. e quando desejo um feliz natal é como desejasse apenas um bom descanso das faltas e dos exageros.

25 dezembro 2003

:: crônica sobre um reencontro

o tempo passa para todos, até para os que resistem às mudanças. eu já me deixei levar, pelo menos quanto a nossa turma. não me deu muita nostalgia vê-los o que é bom. pude aproveitar melhor cada sabor das novas histórias. pensei um pouco em como éramos, mas me diverti mais imaginando o que seríamos e o que podemos ser. antigamente eu ficava preocupado em falar as minhas coisas para vocês, hoje não me importo tanto. sei que poucos podem causar uma interferência seminal na minha vida ordinária. eu mesmo acho que as minhas falas nem são tão presentes. somos como páginas prestes a serem viradas para continuar em outras. escrevemos pouco.

sei que sou muito tosco em demostrar os meus sentimentos. faço poucos carinhos, digo menos ainda. senti-me bem estando ao lado de vocês. é uma confiança rara hoje em dia. acredito em segredos e mistérios. não quero saber tudo, quero ir sabendo aos poucos concomitante a vida passando. notícias aqui, outras acolá. de tempos em tempos, quase meses e se fomos descuidados, anos.

mas sei que estarei prontamente preparado em deixar os meus afazeres em socorro. se precisar, estarei por perto. invisível, mas tentando chegar a tempo. pode ser que não consiga, mas tentarei. é uma honra bem servi-los, não digo alienadamente. faço amorosamente.

não espero por outro reencontro desses. tive essa impressão de coisa rara. por isso dou importância. não é o caso de não me esforçar por outros encontros. mas estaremos mudados novamente e ninguém pode me assegurar que será bom. só sei o que sinto hoje por todos. é um feito bom num ano mediano. não me fazem falta, mas sinto saudades.

24 dezembro 2003



ana,

sempre que me fala de música, me dá cosquinhas de curiosidade de sua voz. não aquela afinada e competente, mas a imperfeita das conversações. risos, silêncios tensos. respiração. billie holiday era como uma rocha quando cantava, não se mexia, a figura deveria ser mto tensa: uma voz poderosa de um corpo inerte. mas acho que não deveria ser ruim conversar amenidades com ela. falar sobre preparos de temperos e poetas tristes em vésperas de natal. vou procurar uma biografia mais precisa embora me encante mais pelas romantizadas.

baixei da internet suas recomendações de mp3's. edu lobo e sua canção triste está entre elas. muito bonita mesmo, embora triste. paulinho moska é difícil encontrar e estou preparando um texto sobre a saudade e brigitte bardot. soube que em alguns cinemas de são paulo, há posters dela para serem vendidos. procurarei um caseiro que não ache estranho pendurar posters de brigitte bardot dizendo adeus nas paredes dessa casa invisível. poderia ser o móvel inaugural.

dançaria com prazer "cheek to cheek" com você. é uma dessas músicas de esquecer. rodopia-se a dois e deixa a pista (que pode não ser uma pista, mas telhados) ser uma máquina do tempo, dessas tratantes com o mundo ordinário; que paraliza os sentidos e conceitos ao nosso redor. uma big band de amigos não deve ser tão cara...

tenho algumas cordas extras de violão. posso lhe enviar se precisar. quando partir, convença-se de que não há nada de errado ou certo. o que existem são notas mais agudas e graves. é de seu violão que sai a canção.

é natal, veja só. só dizendo isso, a cor dessa carta fica vermelha. mas vou insistir no amarelo, porque se posso acreditar que voltará ainda melhor, também é possível que você reivente a cor amarela de coisa medrosa para coisas de ana.


ana,

fez tantas chuvas por aqui e tanto frio no coração que não pude responder a sua carta. mas de madrugada perceb quei algo vinha da suavidade da noite. pensei que era a cor e o cheiro de algo que lhe doía. me ocorreu responder, desenhar ideogramas que vc pudesse inventar, falava com estrelas.

tive medo por um tempo de que não pudesse dizer da melhor forma possível. esse temor de ser entendido ou bem amado. dicionários e livros de versos não ajudam. as caixas de presente não possuem a vedação suficiente para nos dar segurança. não temos segurança de muita coisa e disso tenho medo também.

não vou pedi-la em casamento, mas vou lhe dar uma flor. uma dessas que mudam de cor conforme a umidade, quiça tristeza. se forem muitas, é trabalhoso. se for nenhuma, é falta.

a casa negligenciada ainda é uma casa. o jardim ainda possui sementes, embora os pássaros. pensei em fazer um lago, com peixes e vitória-régias. o verão e o inverno podem nos castigar, mas todo resto só podem nos ser convivas. podemos ter canções e amigos em comum.

não fique triste. se não há musa, há ainda os desenhos animados. saindo daqui, vou procurar os outros episódios do snoopy. falaram-me de alexandria e da biblioteca de nova iorque. mando-lhe cópias assim que as tiver. se a tristeza apertar, aperte alguém. assista sitcoms. leia livros e os horóscopo dos jornais. tire fotos, grave cd?s. aprenda a desenhar e cante.

cante muito. e ana, se estiver acordada me acorde.


:: todos os antigos logos

veja aqui : http://fotos.terra.com.br/album.cgi/493709

23 dezembro 2003

:: aniversário de 1 ano... layout novo

taí o layout novo... com alguns probleminhas ainda, mas para ir consertando...
:: hopesong 2004

estou aqui sentando no chão, assistindo à tevê, tentando pensar no que dizer os amigos algo para que o ano novo seja bom. às vezes nos damos essas responsabilidades que é muito mais um amor de fim de ano do que vontade real e precisa de votos. de quando em quando sou pego por todo esse discurso natalino que recuso por agora pensando que poderia gastá-lo no percurso do ano que vem. também sou patético às vezes.

este ano estou bem mais sereno. foram alegrias e tristezas em medidas quase iguais. mantenho a mesma esperança, nem mais, nem menos. são raros os momentos em que a esperança é continuidade e não quebra. tenho muitos mais projetos em vista para o ano que chega, mas nem assim sou mais esperançoso. a esperança já me é própria.

foi um ano cheio de acontecimentos. pessoas que chegam, pessoas que vão. guerras, sacrifícios, mudanças de atitude. reviravoltas históricas, revoadas de velhos amores, lágrima nova de amores novos. o mundo não se tornou um lugar melhor, mas assisti a pequenas melhorias em alguns. não parti, ainda estou por aqui. com os que souberam pude conviver mais, os que esqueceram poderão lembrar. provavelmente, li muito mais blogs que livros. ouvi muito mais música que assisti a filmes. escrevi muito mais que falei. cantei muito mais que dancei. amei muito mais que apaixonei. ano que vem pode ser tudo diferente, mas não me importo.

acredito na invenção. a vida deve ser uma, não sei bem. deixo-me um pouco ser levado, paisagens e pessoas novas são matéria-prima. a invenção é uma imaginação impregnada de concretude. ela cheira, tem textura e faz mal às vezes. mas é o microcosmo das nossas próprias estrelas... aqueles que vem de olhos outros para morar no nosso coração. inventar é dar novos pesos e formatos ao coração.

a tevê diz: um ótimo ano para todos. quero dizer algo meu, mas não descubro. é algo próximo de: inventem um ano bom e estejam próximos do coração.
:: retrospectiva _ espera.nça

você sempre esperando.

correndo atrás de borboletas que irão perder na seleção natural dessa cidade cinzenta; de pipas enroscadas em fios de alta tensão; de pormenores inúteis que julga serem jóias raras; de empregos bons; de salada de frutas sortidas e de amigos.

escrevendo linhas que quase ninguém lê e mesmo lido, facilmente esquecido. versos que desgostam da intimidade e morrem em seus próprios pontos finais.

tomando por certo, sonhos absurdos e inventando o abuso de torná-los reais.

você espera.

ainda que o tempo já o tenha condenado e os sintomas denunciem o futuro colapso. mesmo que já tenham dito que resta pouco e quase tudo está perdido.

ainda que cansado e um pouco manco, você separa a água suja do arroz e alimenta seu jardim que seca conforme o inverno avança, você espera.

atribuindo nomes e se disfarçando em falsos cognatos. falando línguas do estrangeiro, sentindo emoções do estrangeiro. convocando para celebrar a diferença e condenar a desigualdade. descobrindo na pele as injustiças amorosas e o desfazer de flores colombianas.

vem a noite e você mais que ela persiste, move a peça errada, inverte a tensão e desconhesse a corrente alternada. abre mão da promiscuidade e das drogas legalizadas e passa mais tempo na janela. usa a janela como porta e perde a chave da porta.

você espera e me dá o conceito mais sombrio de esperança. não morrerá só e terá o que sempre esperou.

(julho de 2003)
:: retrospectiva _ a arte

era artista plástico. trabalhava com madeira. fazia tótens, as pessoas amavam, mas não se satisfazia. achava-as bobas paradas em lugares só para serem vistas. podiam piscar, podiam se mover, podiam conversar e sugerir idéias, podiam se inventar sozinhas. mas não era assim. precisava daquilo para pagar as contas, continuou.

até que foi convidado para uma exposição em outras terras. precisava embalar as peças. resolveu ele mesmo fazer as caixas. gostou. caixas guardavam coisas como memórias e invenções. virou marceneiro e inventou muitos tipos de caixas até que um menino pegou uma para ser seu forte. daí ele foi fazer brinquedos.

(julho de 2003)
:: retrospectiva _ flamingo

já é tarde. as ruas em silêncio sepucral. ouço o zumbido das lâmpadas públicas. tento ler, não tenho companhia a não ser o flamingo. ofereço café, ele bebe com prazer. dividimos a preocupação em manter estável a corrente elétrica da casa. pequenas piscadas. o flamingo olha para mim e diz para não me preocupar.

há no olho dele uma serenidade de coisa experiente.

o rádio marca as horas. me acordará se já não estiver. já é domingo. dia do senhor. todos ansiosos pelo dia improdutivo. imagino o parque cheio, dia difícil para o flamingo que disputará com pombos e rolinhas as migalhas de broas, pães e biscoitos. digo a ele que pode ficar, que não será incomodo se ele ficar em outros cômodos. minha leitura é preciosa. é necessário que termine até segunda de manhã. ele concorda. eu prepararei o café e ele, as torradas.

(julho de 2003)
:: retrospectiva _ caminhar

a moça já tinha a prática. o homem se deixava levar. ruas planas eram sempre mais serenas. fora os paralelepípidos! ela não era forte, tinha um corpo pequeno e delicado, embora seus braços parecessem mais velhos. o homem também tinha braços fortes. seus olhos eram tristes e quase sempre fitavam o chão. era difícil para ele. talvez fosse mais fácil para ela.

cadeiras de rodas são metáforas de uma mobilidade imperfeita.

quando ela foi atravessar a rua, percebeu que a guia seguinte era mais alta. tentou pegar um impulso que não assustasse o homem mas que a levasse para o outro lado. conseguiu colocar as duas rodinhas da frente, mas não aguentou o peso do homem para impulsionar a cadeira. ficou no meio fio, esforçando-se.

o homem não podia com aquilo. angustiava-se, mas calava. qualquer coisa que dissesse poderia causar pena nele mesmo. encolheu-se na cadeira. a menina desesperada sentiu que não conseguiria. pensou que se o deixasse cair tudo ainda mais estaria perdido. o esforço que ela teve de fazê-lo acreditar nas coisas, as receitas que disse que ensinaria (havia convencido ele a ser confeiteiro), os objetos que produziriam com barro e vidro. amava-o. não tinha esperanças por si, mas deveria ter por ele.

ela pediu ajuda a um passante. o homem ainda mais humilhado nem quis ver o rosto de quem lhe ajudava. ouviu só a menina agradecer quando ambos já estavam do lado que objetivavam. ele cruzou seu braço esquerdo até o ombro onde estava a mão direita da moça. era um agradecimento. a moça apertou forte por alguns segundos; era um de nada.

(julho de 2003)
:: retrospectiva_ paula

paula era mulher da vida. tivara uns 600 reais por dia e só trabalhava de noite.

nas quartas-feiras ia para o mercado municipal para comprar iguarias. só ficava a mostra a sua tatuagem perto do cocx. todos os vendedores a tinham como boa cliente. comprava mtas coisas refinadas.

paula não trabalhavam de quarta. cozinhava pratos sofisticados que aprendera com um cliente que era chef. ele foi morar na frança e casou-se e desde então paula começou a frequentar o mercado municipal.

jantava sozinha, fazia questão.

até que em uma quinta-feira encontraram-na morta em sua cama. sobre a mesa restos de sopa de legumes e ervas . o pudim estava intacto.

(junho de 2003)
:: retrospectiva _ tique

vc com esse tique no olho,
e a vontade gorfar tudo que anda preso aí no seu coração,
nem percebe que ando tendo tremedeiras e insônias.
e vive tropeçando e achando natural,
porque é da natureza que às vezes as coisas não vão bem.
e sempre tento te convencer que essa sua tristeza infinita
é bem finita se soubesse nãao se incomodar com o tique no olho,
se soubesse gorfar tudo de mal que há em você.
mas vc prefere segurar tudo quieta
e esconder o tique no olho piscando o outro.

(maio de 2003)
retrospectiva _ você

você é esse meu lábio seco e esquecido
que conspira com a saliva
os bens dizeres de uma esperança aguda.

você são esses meu olhos tortos
que enxergam cada vez mais diferente
e cada vez menos tridimensional.

você é esse meu pé e tornozelo
que tropeçam em pedras cada vez menores.
você é a garganta; os dedos que
escrevem prejuízos; a falta de ar nos brônquios.

você é a minha palma da mão fechando.
você é o primeiro passo quando estou no segundo.

você é esse espaço aqui em mim:
entre a aorta e a comiseração.

(maio de 2003)

22 dezembro 2003

sra dalloway,

estou de partida, vou para a africa. tentarei escrever se puder. fiz a barba e raspei a cabeça. tomei vacinas, muitas, coloridas até. minha mala é para dias, mas seu conteúdo é para anos. vou deixar aqui o endereço e o telefone mais próximo de onde ficarei até meados de junho. depois disso, não sei mais. as horas que demorei só para escrever essas linhas demonstram a turbulência do meu coração. guarde biscoitos e café para minha volta, mas se eu demorar os dê para outra pessoa. não deixe de esquecer dos cactos.

toda vez que puder, deixe o portão aberto para os cachorros passearem e certifique-se que a amoreira não adoeça. os morangos estão perdidos. queime todas as minhas cartas, vou reescrevê-las nos meus tempos ociosos. preciso ir agora. os trens são pontuais quando partimos.
:: retrospectiva _ triste fim de um amor desiludido

amanda amava pedro. pedro já havia deixado de amá-la. o tempo fez com que pedro amasse drica que amava pedro.

amanda então escondeu em uma caixa que sempre carregava no bolso o seu amor por pedro. era uma caixinha resistente de carbono e coberto por borracha, ótimo isolante elétrico. era leve a caixa, podia carregá-la sempre. e foi o que fez.

durante séculos a manteve em seu bolso, mas cada dia que passava lhe pesava cada vez mais. trocou de caixa por outra mais leve mas não menos resistente e continuou essa manutenção também por séculos.

em seu caminho de solidão encontraram muitas pessoas que se apaixonaram por ela, mas sua caixa aprontava alguma e ela desistia. teve um episódio em que um menino ia lhe dar o seu coração mas a caixa caiu num barranco, ela foi buscar. o menino com o coração na mão morreu porque não tinha quem mais bombeasse o sangue até as células para fazer respiração.

até que um dia reencontrou pedro. era uma pessoa feliz com drica. os séculos pesaram naquela cena. pegou a caixa e pensou em arremessá-la contra os dois. mas amanda era pessoa boa, virou-se e foi embora. alguns meses depois encontrou carlos que se apaixonou por ela. ele também já tivera muitas caixas e sabia alguns segredos de sua feitura. deu a ela uma ainda mais eficiente e disse:

-- amo-te, mas não posso te negar essa caixa porque é minha única forma de dizer. toma.

e foi embora. amanda pensou em amar carlos, mas não o fez.

(maio 2003)
tá na hora de mudar a cara desse blog...

21 dezembro 2003



ana,

se conseguir chamar um táxi, peça que traga também algodão doce e um pouco de pó de café. se desistir de ir embora, desfaço também minhas malas e tiro o anúncio de venda do apartamento. tem sashimi no congelador e cd?s virgens na dispensa.

19 dezembro 2003

:: retrospectiva _ os anjos

aparecida era uma anja, mas não parecia uma.

andava de golinha em vodka e não dizia quem estava em sua guarda. comprava revistas de moda e dizia que nada daquilo tinha a ver com anjos. seus caracóis eram irritadiços, armavam-se para cima feito chifres, mas jurava que era coisa de nosso senhor. apesar de ter um corpo médio, era dona de mãos extremamente delicadas que não representavam a vida dura que levava de empregada doméstica. por isso que todos acreditavam em sua anjelicalidade.

dificilmente usava branco. gostava dos tenis coloridos e tinha coleção de meias que comprava semanalmente no largo da concórdia. às vezes, olhava pro céu, meio desiludida por não terem vindo buscá-la ainda. olhava para as meninas que acreditavam e dizia:

-- há muito para fazer nesta terra nefasta! vão estudar, suas vadias!

e soltava gargalhadas contagiantes. as meninas nunca revelaram de onde aprendiam tantas palavras deselegantes, mas aparecida também nunca contava onde a maioria encontrava seus namorados. era um criatura estranha. quando hesitava em jogar futebol (era goleira de primeira) dizia que iria cuidar de suas asas e descansar. já fazia um tempo que aparecida não andava tão entusiasmada, até os palavrões deixou de usar. todos pensaram que foi o namorado bandido que a largou.

-- nem. foi eu que larguei, eu sou anja, eu posso fazer isso sem me machucar.

e foi num dia como hoje que aparecida sumiu. fazia um eclipse lunar, todas as garotas preparavam para assistir e fazer um relatório para a aula de ciências. aparecida fez sucos e sanduíches. e foi dormir. no dia seguinte, já não estava mais lá no seu quarto. suas roupas também não. um bilhete: o eclipse me levará.

procuraram por muito tempo, mas nada. disseram que voltou para casa. mas ela nunca disse onde era sua casa. então o telefone toca:

-- voltei!

era aparecida. disse que estava por aí, tentando ser anjo. as meninas reconheceram mas não acreditaram. anjos não existem.

(maio de 2003)
:: simples

"a grande dor das coisas que passaram".
camões

17 dezembro 2003

:: fim de ano

nos dias entre o natal e o ano novo costumo pensar nas coisas do ano que passou. mas uma pergunta inusitada de uma amiga apressou o momento.

-- quem beijou esse ano?

sempre faço um balanço das coisas que fiz e que me aconteceram. aproveito para lembrar das pessoas que me fazem falta e das que não fazem mais. das que entraram em minha vida e que devem ficar por enquanto. das que engrossam a parede do desinteresse. de um ou outro que já faz algum tempo que especulo o rumo tomado e de outros dos quais fico feliz por terem caminhos tão abertos e possíveis.

há na minha análise muito de subjetivo. sou desonesto o suficiente para dar pouco peso para as coisas ruins e grande importância para as boas. meço na lua as partidas, frustrações e separações e na terra, os encontros, as alegrias e as realizações. é uma luta perdida: tive um ano bom.

quase não tenho inimigos. os amigos, bem ou mal, matenho laços aparentemente frágeis mas cheios de esperança. e disso faço meu simbólico ano novo.

a amiga sentiu-se vitoriosa pelo constrangimento causado. pergunto a ela quantos ela havia beijado esse ano que passou:

-- sete... e meio.

sorrio. sei os nomes de três, talvez quatro.


ana,

imaginei as coisas acontecendo de trás para frente. os ponteiros amalucados; o sol indo para leste; as pessoas caminhando para trás. a decomposição se compondo. os sorrisos refeitos. o rio que corre para trás tirando as energias das casas. as supernovas desimplodindo e voltando a ser estrelas.

e a queda que vira asa ruflada e vôo. a cara de dor se tornando cara de superação.

imagine os acontecimentos como o teu nome. tudo igual de trás para frente e seu avesso...


p.s. há uma explosão demográfica de sebos... mas os livros são os mesmos.
:: leilla

pensei na leilla hoje. em como fomos perdendo a intimidade e tornando o nosso tratamento menos ousado e engraçado. lembrei que pouco depois que abandonou a faculdade me assustei ao vê-la tão magra e pálida (regimes e falta de sol). parecia que a tinham reinventado.

depois o tratamento cada vez mais polido, cada vez mais respeitoso. até que percebi que não era vontade de afastamento, mas verniz para a janela recém descoberta.
:: meias trocadas

a moça que cuida dos computadores me joga olhares maliciosos. trata-me excessivamente bem e num momento em que não tenho como esconder meu constrangimento digo:

-- não sou bonito, moça!

-- mas deve ser sonhador.

-- hã? como pode saber se sou ou não? pergunto já acreditando que é meio louca.

-- pelas meias misturadas.

-- ah... isso pode indicar que sou desatento.

-- não, porque você as combina.
:: mensagem por sms

ia mandar essa crônica para a mariana por sms, mas teria que dividir em muitas prestações...

O Pavão

Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas dágua em que a luz se fragmenta como prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.

Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.

Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz do teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.

Rubem Braga
:: a voz dos amigos

estou perdendo o hábito de telefonar. a pós-modernidade inventou o email e o icq que deram à palavra escrita outras dimensões. há os celulares, mas sua manutenção é tão cara que desinventou o telefone.

a pessoa com quem mais falo por telefone talvez seja a mari. porque ela tolera bem meus surtos e mudanças de humor, ela tem um pouco mais de tempo que os outros e me convenceu que não sou tão chato para com ela.

com os outros são essas desculpas que eu quem não liga ou lhes falta tempo. mas o que acontece é uma troca de hábito de telefonar por um hábito de não telefonar.

-- mari?

-- oi, meu querido!

a voz dos amigos é aveludada e quente.

16 dezembro 2003

:: edições

revejo o video que fiz de você. parece tão datado e amarelo agora. fico na dúvida se não era melhor que tivesse mantido o som direto ou se a música escolhida vai ficando gasta.

a primeira vez que assiti a esse material, nem sabia direito que sentido dar. responsabilidade grande dar sentido para as coisas, principalmente as suas. pensava que podia ter as suas frases doces em off, mas essas você disse para mim e não para a câmera. ficaram perdidas em mim.

cogitei que esse video pudesse lhe trazer paz em momentos de angústia; que a despertasse a choradeira quando essa estivessa contida em quase rebento; que dissesse o que eu nunca consegui articular muito bem com as palavras; que a fizesse sentir menos só porque alguém a havia reconhecido.

mas é apenas um vídeo, editado toscamente e que não tem créditos finais. um vídeo que não tem mais onde passar.
:: pacto

estou com as "200 crônicas escolhidas" do rubem braga na frente. vou folheando, pois não sei por onde começar. fico nervoso, não sei bem o que quero ler. talvez queria algo que acalme minha ansiedade; algo em que me reconheça ou que me dê conselhos. algo sobre a amendoeira ou a passagem de um grande amor. algo sobre joelhos ou frustrações. alguma coisa que me faça acreditar que vale a pena...

mas o livro me acusa, sente-se mal. cai de minhas mãos umas duas vezes. fico constrangido pela responsabilidade que a ele atribui. fazemos um pacto de tolerância mutua e começamos.


ana,

deve haver no coração algum departamento que dite normas ou sugestões a cabeça sobre esses assusntos do esquecer. se há razão, pois desconfio que não há, não deveríamos sentir tanta falta e cheiros estranhos.

ainda porque essas coisas inesquecíveis que impiedosamente nos multilam com soberba, nos arrancam pedaços cada vez maiores, são também matéria prima ou força motriz que nos constrói ou nos reinventa.

e sugiro começar a reinvenção com um blues sobre cheiros estranhos.

p.s. drummond dizia coisas sobre as passagens dos amores e a insistência do coração... tudo passa, até essa carta.

:: distância

vivemos tempos absurdos. tempos em que as distâncias e seus sistemas métricos se confundem. jogo damas com uma amiga na alemanha. falo sobre amores que se calam pouco com cariocas. há pessoas que vejo pouco apesar de morarem na minha própria cidade. e as pessoas que não reconheço mais. a distância nos deforma, o tempo nos retoma. nunca seremos as mesmas pessoas se tivermos sempre esse desejo que querermos ser melhores.

e sempre queremos melhorar.

e esses tempos absurdos nos dão saudades absurdas. esquecemos com facilidade laços que sempre julgamos próximos do eterno e arrastamos amores passados em nossos umbigos. repetimos as mesmas atitudes dos livros que lemos. não inventamos nossas próprias loucuras. procuramos encenar que a distância não nos modifica. e vai ver, não modifica mesmo.

é só o mundo que inclina alguns poucos graus num sistema métrico preponderante.

15 dezembro 2003



ana,

acredito que suas malas estarão prontas minutos antes de colocá-las no bagageiro. até lá serão apenas carregadores despreparados. o inventário nunca está perfeito como todo inventário deve ser. há ainda a lista das coletâneas que você pretende gravar para levar apenas as músicas que possam dizer coisas novas. talvez fosse bom olhar as malas sempre de noite, de manhã sempre soam faltosas e repressoras: "falta-me".

é uma informação desimportante, mas que faz rir: as malas boiam.

p.s. estou imprimindo livros em papel de seda. são leves e graciosos... e dá para usar para fazer pipas. vai anexo.
:: sras e srs, o cronista

quando criança, temos esses desejos irresponsáveis de profissões aventureiras. o que você vai ser quando crescer? jornalista, bombeiro, escritor, ator, policial, presidente e artista. quando estamos dando os primeiros passos no caminho do mundo é vontade nossa sermos guiados por heróis. conheci uns poucos que gostariam de ser pai ou mãe... já ouvi quem dissesse que gostaria de ser tia por ser filha única.

hoje comprei a edição nova das "200 crônicas escolhidas" do rubem braga e percebi que ser cronista é um desejo infantil meu. um desejo que permanece em cada observação que tento fazer acerca do mundo. amo as crônicas de rubem braga. lembram-me drummond, mas com mais serenidade. sorrio sempre depois de cada crônica lida. tenho vontade de chorar às vezes. era isso que gostaria de provocar com estes posts. tento, enfim.

mas não sou cronista. há na crônica refinamentos que consigo pouco. um pouco de história, documento, poesia, sensibilidade. acredito que há na crônica não só o registro do tempo que nos ronda - o tempo meu, dos meus amigos, da minha família, das minhas resistências e lutas, dos fracassos e perdão -- há também o registro de um transbordamento comum na vida cotidiana, mas que nos foge pelo ralo desse mesmo tempo.

há o lápis, a caneta e o papel. e há o mundo lá fora acontecendo, pedindo para nós que façamos acontecer. se há alguma invenção, não se preocupe, o mundo é todo invenção. o cronista só pede que ele envelhaça junto com o tempo repartido dos amigos.
:: retrospectiva _ smile

sra. dalloway, estou escrevendo essas palavras neste caderno tosco encantado com o cd que há pouco gravei para você. já pude transpô-lo para uma fita e assim me desprendo como se fosse passarinho (1) das máquinas grandes para ficar com este walkman que ouço agora no ônibus. essa é minha mediação com o mundo que passa muito rápido lá fora através da janela. estou meio encabulado (2) em lhe escrever, mas não sei como nos manter próximos estando você com suas coisas urgentes e eu com as minhas.

gostaria de ter um avião (3). gosto da idéia de voar. gosto da idéia de não ter meus pés no chão por alguns momentos. como os pássaros. de alguns maquinários a gente se livra, de outros ficamos dependentes. máquinas de sonhos, máquinas de projetos pneumáticos. no ônibus sinto uma gravidade diferenciada, imagino que ao seu lado as dores devem ter outros pesos. nesse caderninho nem cabe a imensidão que é estar sentado na janela e naquele banco mais alto que fica em cima da roda. se eu abrir a janela, vem um vento e posso esquecer (4) um pouco das coisas terrestres. mas acho prudente voltar. esquecer demais também nos exila de outros prazeres e questões. posso imaginar você rindo de tudo que te conto, sra. dalloway. posso sim. e só posso isso com os meus pés no chão.

fico imaginando por que os anjos não sonham... parece que é porque eles já são um. alguém que pode voar é merecedor de meu respeito. mesmo que seja por alguns segundos de milésimo. mesmo que seja o tempo de saltar do ônibus para outras vidas. se eu tivesse asas talvez tivesse menos razões para anotar tudo nesse caderno. quem tem asa não precisa tanto de memória. mas somos miseráveis (5). precisamos nos ater a tudo que possa nos ferir. a vida maçante, procurar emprego, ouvir desaforos e descrenças, guerras e violências. as pessoas que entram, já entram cansadas do dia. o ônibus é feito de pessoas que não querem estar ali. olho para a janela e parece que há muito mais sorte lá fora. pessoas mais satisfeitas e talvez felizes. oh, que bom, alguns deles entram e me tiram a impressão que todos somos feitos de fadiga no final do dia.

fico assim: de um lado ouço murmurios dos que voltam, de outro passam rápido as falas dos que ficam. na minha vida(6), sra. dalloway, vc faz parte das duas coisas. umas horas, fica; outras, você vai. eu projeto cenas de um futuro sonhado. e sinto uma saudade que não deveria existir ainda. meu lugar não é lugar. o ônibus vai indo embora. todos os cenários são escorregadiços e mesmo que possa imaginá-la, sra. dalloway, em quase todos esses lugares, vou-me perdendo nesse itinerário. preciso trocar as pilhas. um momento.

será que vou perdendo o afeto como a energia que se esvai das alcalinas que comprei hoje? espero que a vida útil (7) seja sempre positiva. tem vezes que deixo o rádio ligado sem querer e me desaponto com a falta de energia em horas inapropriadas para faltas. espero que sempre aproveite todas as coisas que lhe são oferecidas e melhor, conquistadas. espero que tenha valido mta coisa a pena. para mim vale mto.

sua vida é linda, sra. dalloway, sua vida deixa a vida dos outros também linda. sua vida é linda. se você se sentir triste, preste atenção e não perca o controle. todos estão olhando. todos estão ouvindo. alguns podem ler essas confissões. mas ninguém pode fazer o que só você pode fazer por você (8). com os olhos abertos, você pode mudar o mundo reinventando; com os olhos fechados pode esconder melhor o choro de tanto amar. não é isso que costuma fazer geralmente, sra. dalloway?

será que você vai saber o quanto penso em você com o meu coração? ainda é a menina mais bonita... (9)

sabendo ou não, ainda estou na minha nave (10) voltando para casa. imaginando anjos nas caras das pessoas. quero ir embora. quero chegar logo e mandar para você essas folhas que já se confundem com os deveres e listas e preços e telefones e anotações das coisas ordinárias. preciso de um exemplo de força e organização para estruturar melhor minhas idéias. ouve essa música (11), sra. dalloway, é suave como o jeito que baixa a cabeça e olha para mim. se eu pudesse ser alguém eu seria você (12).

todo amor que houver nessa vida (13) é muita coisa. as pessoas do ônibus acham o mesmo. pergunto para a senhor que está ao meu lado que concorda. as meninas do terceiro ano encostadas perto da vaga para cadeira de roda discutem um pouco e também concordam. o motorista acha que não e acelera pensando no insólito da sua certeza. quero um remédio que me dê alegria também. porque sinto sua falta, sra. dalloway, nos veremos em breve (14)? não sei se o ônibus que tem pressa ou meu coração que bate mais devagar. já é o final da terceira folha e a fita já está quase acabando. eu querendo que as coisas saiam direito, mas nem tudo pode ser do jeito que a gente quer (15). e você sabe muito melhor que eu. gosto da idéia de que podemos trabalhar conspirando a favor de outras esperanças que não essa: ser feliz.

talvez se tentasse mais, fosse mais comum que sorrisse (16). começo a gostar da idéia de que esse texto tão vão ecoará sorrisos em sua boca. o ônibus chega no meu ponto. as pilhas aguentam até amanhã e meu caderno já está se desfazendo de tantas freadas, buracos e acrobacias. quase decolei algumas vezes.

e as janelas estava tão sujas que pude voar em teus sorrisos refletidos nos vidros.

playlist:

1. songbird _ oasis
2. ask _ smiths
3. aeroplane _ red hot chilli peppers
4. we have forgotten _ sixpence none the richer
5. heaven knows i'm miserable now _ smiths
6. in my life _ beatles
7. time of your life _ green day
8. for you _ coldplay
9. o descobrimento do brasil _ legião urbana
10. leaving on a jetplane _ bjork
11. tarpoleon napoleon _ shelby lynne
12. se eu pudesse ser alguém eu seria você _ deja vu
13. todo amor que houver nessa vida _ cazuza
14. see you soon _ coldplay
15. you can't always get what you want _ rolling stones
16. smile _ weezer

(abril de 2003)


ana,

vou procurar seu velho endereço para mandar postais para sua velha casa. sei que não estará lá, então posso falar dos meus excessos.

p.s. a receita de mousse de maracujá vai anexo.

14 dezembro 2003

:: rumores

há em minhas costas um grito frêmito que se agarra ao pescoço e fala no ouvido algo entre o flerte e a resignação. minha alma escorre uma luz de chuva, refratada e quase torta. um fio de resignação que corre para um mar. e tenho medo. essa voz grita com graves sussurros os motivos bobos para que eu tenha medo. e nela me despedacei.

o grande futuro está a frente como serra atravessada. perco meus olhos entre as edificações naturais e as construídas por mim mesmo. sou bom mentiroso, disse que te amava. uma correção nas sobrancelhas, outro respiro acelerado e o coração está no fio da navalha. a solidão é a eterna ansiedade do coração ser partido em dois para aliviar a falta de ser um.

se pudesse partir, partiria. se pudesse beijar, beijaria. se pudesse anoitecer, anoiteceria.

se pudesse ser um grito, me calaria.

10 dezembro 2003

:: blog novo

05 dezembro 2003

:: retrospectiva _ o grande amor

hoje, no metrô, encontrei-me com o grande amor. reconheci-a. cabelos curtos, um certo ar de preocupação com as horas (era domingo de manhã !), camisa branca, saia até o joelho, sandálios com um couro bem surrado. fitava-me de soslaio, fazendo a mesma pergunta que eu: "e agora?".

desci. ela procurou um lugar melhor para assistir minha partida e eu representei a melhor partida.

fitei seus olhos e o trem avançou. sorri "vamos nos reencontrar?". e saiu de seus labios um sorriso de sim.

(março de 2003)

04 dezembro 2003

:: giovana

o que giovana gostava era dividir átomos.
:: pedaços de uma cecília imaginária

_ alvorada

e essa alvorada que anseia
cheia de cheiros alcóolicos, suor.
rebento. freiando até o ponto de equilíbrio
que alivia o estar só.
o broto tranquilo do dia seguinte
é esperança de menos solidão.
retrospectiva _ o não-lugar

sentimento de estrangeiro. pergunto-me se faço parte de alguma conspiração. não me encaixo. adapto-me, mas é muito mais que imperfeito. sou deslocado, não me reconheço no lugar, se é que isso é possível para alguém.

é como se não tivéssemos casa. como se nossas aspirações não pertencessem a parte alguma. muitos chamam isso de liberdade. não pertencer, embora não soe obscuro, é extremamente desconfortável. será possível sentir-se confortável nesse mundo? como o sofá que pertence àquele canto da sala, como o pires ao seu conjunto de louças na estante. somos como fugitivos, andarilhos de um deserto-prisão.

o que faz um lugar ser nosso? que tipo de apego é necessário para tão ousada posse? sinto falta de lugares que não conheço ou conheço pouco. os lugares em que se encontra, passa ou sonha. os lugares possíveis de nos encontrar.

o que resta para nossa casa é o coração de alguém. assim como arrumamos o nosso para que seja morada também.

(fevereiro de 2003)
retrospectiva _ das gavetas

poemas com mofo. pedaços grilados. manchinhas e letras feias. memórias de outros cobertores.

_ a quinta estação

há muito gostaria de estar com você, mas não posso ficar.
a noite está chegando e preciso aliviar um pouco minha fadiga.
posso ficar uns dois minutos e meio deitado no teu colo
esperando que você me diga do modo mais sincero que me ama.
mas daí precisaria de mais duas horas e um quarto para eu fazer o mesmo,
então é melhor que eu vá.
segura um pouco meu antebraço
e finge que esqueceu de me dizer algo do nosso filho que ainda não veio.
eu espero, um pouco irritado, a sua insegurança deixar de ser um obstáculo
para ouvi-la com toda atenção. aí você se cala e diz que não é nada,
que você também precisa de um descanso para não ter tantas olheiras de manhã.
eu toco teu rosto com o lado de fora da mão, porque a palma revelaria
a minha ingratidão e a minha vontade de não perdê-la. ergo sua face
pelo queixo porque sei que assim você pegará o meu rosto me beijará com violência.
mas percebendo a minha indiferença, largar-me-ia aos poucos, olharia nos meus olhos
para procurar a razão de tanta falta, de tanto vazio. afastando até achar o espaço
para derramar suas lágrimas, sozinha e com medo de não ter achado a pessoa certa.
pensando que está sofrendo e perdendo a juventude.
eu, por minha vez, alisaria seu cabelo e diria que está tudo bem,
que sou assim mesmo. que lhe daria um filho ou dois. que o meu fraco é o beijo.

e que te amo.

(de mariana.blues | 1999) > no parachutes em fevereiro de 2002

03 dezembro 2003

:: selma

muitas decisões são tomadas a partir de certos conhecimentos. amar é quase um desconhecimento.

selma imagina as pessoas mortas. se sentir tristeza e falta é porque os ama.

02 dezembro 2003

:: vestibular

reencontrei daniela no mesmo lugar que nos despedimos: no vestibular.

conhecemo-nos no cursinho quando ainda pretendia prestar cinema. sempre achei um erro seu a escolha da enfermagem quando tinha aptidão e paixão pelas letras. era preciso. já passara mtas dificuldades com o tratamento de depressão que teve alguns anos antes de fazer cursinho. quem sabe, dizia.

e estávamos nós cruzando caminhos novamente, sonhando com futuros bons. não importava muito se o peso dos anos desde aquele vestibular nos faz pessoas melhores. o que importava era que embora fosse diferente de alguma forma, a sua reclamação sobre os sucos dados pelos cursinhos na frente do prédio continuava hilária.