a million parachutes

for us

07 março 2004



ana,

escrevo ainda com o frescor da nossa conversa que embora não fosse de timbre fiel, revelou a tensão e a disritmia da sua voz doce. o mundo é som também, pude comprovar. não fosse pela música, talvez me satisfazesse apenas com sua voz. poderia ter pedido que cantasse, mas não me ocorreu. seus risos me distrairam muito.

não sei muito do destino. talvez pregar peças seja mais ameno que má sorte. tenho impressão de que nos atribuem muito mais desencontros que encontros. muitas vezes devo ter passado por você ou coisa que pudesse ter você e não reconheci -- lembro-me de angela ro ro cantando em véspera e dor: "enquanto me tiver/ que eu seja a última e a primeira,/ e quando eu te encontrar,/ meu grande amor, (por favor), me reconheça". não se ocupe muito do telefone, ligo mais quando puder. a minha insistência pode disfarça qualquer má sorte.

não recebo muitas ligações. mas as que chegam são precisas. talvez pela raridade, talvez pela especificidade. embora pareça conversa jogada fora, é desses papos que tiro lições de algebra, culinária e estórias. me intero, mesmo com deficiência, do mundo que acompanho com dificuldade. as outras vidas que estão longe correm paralelas em vias de comunicações invisíveis. as palavras não só informam o peso, o custo do algodão, os acontecimentos da família. a cada palavra sei se a vida está sendo boa com quem me preocupo. a cada som percebo o mundo se mover e que todos temos sonhos.

italo calvino nas suas cidades invisíveis relata muitas histórias sobre cidades duplas, cidades que possuem um reflexo inventado de acordo com a loucura local. imaginei que somos muitos e que identidade é quase fé. não sei quantas anas há por aí, não sei quantas estão em meus olhos e ouvidos. seriam análogos os fins das cidades com os sentidos das anas?

as cidades não tem fim.

marcio