ana,
ando escutando muito samba, muito por causa do meu trabalho, mas não reclamo. estão digitalizando um acervo importante aqui da cidade e tenho o privilégio de já poder ouvir antes que os outros. não pude, porém, ter a experiência do pó temporal. ouço coisas antigas só com a impressão de agulha de vitrola, sem o risco de me cortar.
e há tanta coisa bela que nem imaginava.
muita coisa nova também passa pela minha mão. muitos sonhadores que gravam suas canções com a esperança de viver disso. os outros funcionários pedem para eu não ser tão meticuloso por causa do tempo ou pela falta dele. mas me descuido e me deleito. o samba quer dizer algo para mim, ana, percebo isso. não sei o que é.
* * *
e nessa inquietação, paulinho da viola me perguntou com vontade de conversar. me pediu um samba sobre o infinito e eu só me atrevi a dar ritmo com batidas na mesa. percebendo minha dificuldade, começou ele a bater também. disse:
-- pensa no coração de alguém.
aí eu pensei no seu. ele sorriu porque minha dificuldade foi sumindo. me deu vontade cantar algo que me dissesse, mas não encontrei o quê e as palavras. paulinho sorriu novamente e me disse:
-- descobriu o infinito.
* * *
então veio adoniran barbosa e disse que a nossa casa invisível, ana, na verdade é uma maloca. ele é muito gente boa. perguntei rindo:
-- é porque tem gente louca?
ele respondeu em um português impecável:
-- quem mais senão gente louca para enxergar uma casa no invisível?
* * *
me decidi: vou comprar um pandeiro. ao menos treinei com cadernos a girar em torno de si com um dedo só.
* * *
e descobri: o samba não quer dizer nada. só quer tantos motivos para ser quanto nós cartas para escrever.
e a roda acabou com esse refrão.
beijos
márcio
p.s. ouve isso numa peça de teatro regado ao melhor tango: "melhor chegar a tempo do que ser convidado". ana, espere-me. embarco para aí em meados de abril. já será outono.
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