:: Pedra, tesoura, papel.
Ajoelhou-se um instante, curvado. Depois levantou, fez uma reverência com a cabeça, e pulou. Estava de terno, gravata e sapatos. Parecia muito jovem, com uma silhueta reta, a prumo. De longe, não deu para ouvir o barulho do corpo caindo na água. Só alguns minutos depois a sirene dos bombeiros. Mais um suicida, afogado no rio Tsurumi. O relógio marcava quatro horas.
Que coisa horrível, ela disse, arregalando os grandes olhos redondos. Não, respondeu Ichiro. Olha que doçura o leito largo, corrente, cheio de barcos, gente pescando. Tentava convencê-la, mostrando a fotografia. À toa. Porque a alegria do Tsurumi não se comunicava. Onde? Não vejo nada disso, só melancolia, lonjura e um céu acabrunhado. Ao que ele mais defendeu. Nem tudo está na foto, mas é assim que é: lindo. E mórbido, insistiu a amiga.
Haviam se reencontrado por acaso, na festa do amigo de um amigo etc e tal. Bem na hora em que ela soltava as tranças compridas, escondendo o pescoço debaixo de umas mechas rubro-negras. Era um sinal e uma provocação. As mulheres japonesas, ele pensou, conhecem 300 maneiras diferentes de prender os cabelos.
O que mais aconteceu? Ela queria saber detalhes. Mais nada. Fiz a foto, fui para casa buscar a bagagem, peguei o vôo Yokohama/São Paulo e voltei para o Brasil, curado de você. Mentiroso. Ichiro ficou rijo, faca enfiada no orgulho. Pois eu não sarei nunca, ela choramingou. Agora, sim, era mentira. E mesmo que não fosse. As mãos ignoraram tudo, e se pegaram vazias, sozinhas, morrendo de vontade. Ainda de leve. Você é doida, egoísta e vaidosa, que nem essa cidade, ele gemeu. Porque a alma dele era grave, ela achava só divertido. Pedra, tesoura, papel. Jogavam e riam.
Ichiro pressentiu a fossa abissal, desde que os olhos dela não desgrudaram os dele, encarando, antipáticos. Ou debochados? Ou amorosos? Detestava aquilo, o costume geral de olhar na cara. A vontade era perguntar: 'tá olhando o que? Mas confusões culturais, semânticas, idiomáticas, tanto tempo equilibrando a dupla nacionalidade, dupla realidade, pesos, medidas e caligrafias diferentes...o que saiu foi: você quer me levar para a sua casa? Ela aproximou o corpo. E quis.
Estiveram quietos durante o caminho. Que agonia, ela reclamou, enquanto abria a porta. Você continua igual, calado nesse silêncio superior de quem esconde o que pensa. Odeio isso. Pois Ichiro quis falar, depressa precisava falar, qualquer coisa. Por exemplo, fui dispensado do exército. Que bom. É bom, ele concordou, muito bom, mas adivinha por que? Pé chato, joanete, disritmia, pistolão, diabetes. Não, não servi porque sou japonês. Ah, isso foi muita diplomacia das forças, ela brincou. Racismo, ele esclareceu. A Macunaíma e Mishima, beberam e brindaram. Ele pediu para conhecer a cozinha e improvisou um caldo especial, receita antiga, energizante. Não sei cozinhar, ela avisou. E ele também não tinha esquecido o que ainda era evidente no sortimento medíocre de temperos. Sentiu-se protetor.
Tomaram a sopa, ficaram bêbados e não viram mais nada. Os dedos se atacaram de novo, frenéticos, pedra, tesoura, papel, comendo-se no quebra, corta, cobre, esquecidos das diferenças. Depois os braços, as bocas, as pernas em plena subversão geopolítica. A ásia fazia tremer o atlântico, enquanto o pacífico partia em arquipélagos, vulcões e tsunamis toda a floresta da américa latina. Metidos um no outro, feito o suicida dentro do rio, ou vice-versa.
De manhã, Ichiro cochichou pra ela: o coração das mulheres é céu de outono. Limpo? Não, amistoso, mas sujeito a tufões. Abraçada nele, ela pediu. Você me dá a foto? Que foto? Aquela, do Tsurumi, onde o sujeito se jogou. Por que? Porque você parece um rio, de uma cidade remota, onde as pessoas brincam e se matam, muito longe. Outras vezes, está mais para afogado e até parece realmente um brasileiro. Dá ou não dá? Não dou, que o rio é meu. Ela duvidou. É sério. Não acredito, Ichiro, não acredito que você não vai me dar essa foto. Não vou. Então pode ir embora. Ele riu. Ela levantou da cama para o chuveiro. Ele foi na padaria, trouxe o pão, fez o café. Ela ainda fechada no banheiro. Ichiro pôs a mesa e enfeitou um copo longo com uma complicada rosa de papel, construída meticulosamente com guardanapos dobrados. Ela demorava. Mais tempo do que o normal. E ele começou a sofrer. A ficar sem graça. Deslocado. Um medo sutil. Os próprios sapatos se mostravam muito pequenos, o peito largo demais, o nariz pouco incisivo, os olhos... tão diferentes dos olhos dela. Lutava para estar à vontade. A casa ganhava ares estrangeiros, de outra civilização. Ele rastreava os detalhes, os objetos, na garganta um sentimento natural encharcando os afluentes exóticos. Vontade de ir embora e de ficar. Teve a certeza, num instante, de que ela não ia aparecer. Só quando ouvisse ranger o portão, o sininho dos ventos, o cachorro do vizinho. Devia estar fumando, sentada no ladrilho, esperando a deixa. Exatamente como da outra vez, mesmo que não houvesse mais sininho, nem cachorro, nem vizinho.
Quando Ichiro abriu a porta do banheiro, ela batia as cinzas dentro do bidê, conferindo o relógio. Encarou a amiga de frente, segurando o olhar como faziam as pessoas e ele, francamente, achava horrível, agressivo e invasor. Ela abaixou a cabeça, sem explicações além do próprio vazio, incomunicável narciso, margem oposta, detonada e sem salvação. À mostra, a penugem da nuca, mas nem isso adiantou. Você ia me deixar lá esperando pra sempre, por que?, ele perguntou, de raiva. Porque. Só porque. E era um jeito próprio dela, de dizer: é assim mesmo que eu sou.
Não foi pé chato, joanete, disritmia, pistolão, nem diabetes. Algumas assimetrias, um quase nada, vai que os fusos horários, oriente, ocidente, alguma falta de diplomacia. Foi o que ele viu. Da vez anterior, quando ela fez isso, Ichiro quase morreu de dor. Agora a alma passeava com modos de origami pela loucura e o perdão dos trópicos. Desdobrável, ia se reinventando, reerguendo e construindo -- garça, raposa, qualquer dia, dragão.
Saiu na rua e era como se bordejasse, atado às costas de uma enorme tartaruga marinha, a mesma que carregou uma vez um pescador para ser imortal no fundo do mar, na condição de para sempre se guardar submerso. Fábula contada e recontada desde criança. Contra os males daquela e doutras pandoras metropolitanas, ele se reservava, oh infinita paciência, o segredo do pescador Urashima: o tempo, com todos os segundos e anos e séculos que iam devorar um a um aqueles cabelos compridos. Andava e ia se acostumando, refluindo entre as marginais, com a foto do Tsurumi no bolso, o Tietê a seus pés e a alma perfumada de cerejeiras em flor.
verônica couto
nov./2004
Esse texto foi escrito pela verônica a partir da foto acima que tirei em 97 quando estava no Japão. Achei o texto lindo, apesar de apontamentos do João Silvério Trevisan sobre um certo "racismo". Ela não fez por mal, é claro. A sensibilidade do texto, para mim, supera tudo isso.
Ajoelhou-se um instante, curvado. Depois levantou, fez uma reverência com a cabeça, e pulou. Estava de terno, gravata e sapatos. Parecia muito jovem, com uma silhueta reta, a prumo. De longe, não deu para ouvir o barulho do corpo caindo na água. Só alguns minutos depois a sirene dos bombeiros. Mais um suicida, afogado no rio Tsurumi. O relógio marcava quatro horas.
Que coisa horrível, ela disse, arregalando os grandes olhos redondos. Não, respondeu Ichiro. Olha que doçura o leito largo, corrente, cheio de barcos, gente pescando. Tentava convencê-la, mostrando a fotografia. À toa. Porque a alegria do Tsurumi não se comunicava. Onde? Não vejo nada disso, só melancolia, lonjura e um céu acabrunhado. Ao que ele mais defendeu. Nem tudo está na foto, mas é assim que é: lindo. E mórbido, insistiu a amiga.
Haviam se reencontrado por acaso, na festa do amigo de um amigo etc e tal. Bem na hora em que ela soltava as tranças compridas, escondendo o pescoço debaixo de umas mechas rubro-negras. Era um sinal e uma provocação. As mulheres japonesas, ele pensou, conhecem 300 maneiras diferentes de prender os cabelos.
O que mais aconteceu? Ela queria saber detalhes. Mais nada. Fiz a foto, fui para casa buscar a bagagem, peguei o vôo Yokohama/São Paulo e voltei para o Brasil, curado de você. Mentiroso. Ichiro ficou rijo, faca enfiada no orgulho. Pois eu não sarei nunca, ela choramingou. Agora, sim, era mentira. E mesmo que não fosse. As mãos ignoraram tudo, e se pegaram vazias, sozinhas, morrendo de vontade. Ainda de leve. Você é doida, egoísta e vaidosa, que nem essa cidade, ele gemeu. Porque a alma dele era grave, ela achava só divertido. Pedra, tesoura, papel. Jogavam e riam.
Ichiro pressentiu a fossa abissal, desde que os olhos dela não desgrudaram os dele, encarando, antipáticos. Ou debochados? Ou amorosos? Detestava aquilo, o costume geral de olhar na cara. A vontade era perguntar: 'tá olhando o que? Mas confusões culturais, semânticas, idiomáticas, tanto tempo equilibrando a dupla nacionalidade, dupla realidade, pesos, medidas e caligrafias diferentes...o que saiu foi: você quer me levar para a sua casa? Ela aproximou o corpo. E quis.
Estiveram quietos durante o caminho. Que agonia, ela reclamou, enquanto abria a porta. Você continua igual, calado nesse silêncio superior de quem esconde o que pensa. Odeio isso. Pois Ichiro quis falar, depressa precisava falar, qualquer coisa. Por exemplo, fui dispensado do exército. Que bom. É bom, ele concordou, muito bom, mas adivinha por que? Pé chato, joanete, disritmia, pistolão, diabetes. Não, não servi porque sou japonês. Ah, isso foi muita diplomacia das forças, ela brincou. Racismo, ele esclareceu. A Macunaíma e Mishima, beberam e brindaram. Ele pediu para conhecer a cozinha e improvisou um caldo especial, receita antiga, energizante. Não sei cozinhar, ela avisou. E ele também não tinha esquecido o que ainda era evidente no sortimento medíocre de temperos. Sentiu-se protetor.
Tomaram a sopa, ficaram bêbados e não viram mais nada. Os dedos se atacaram de novo, frenéticos, pedra, tesoura, papel, comendo-se no quebra, corta, cobre, esquecidos das diferenças. Depois os braços, as bocas, as pernas em plena subversão geopolítica. A ásia fazia tremer o atlântico, enquanto o pacífico partia em arquipélagos, vulcões e tsunamis toda a floresta da américa latina. Metidos um no outro, feito o suicida dentro do rio, ou vice-versa.
De manhã, Ichiro cochichou pra ela: o coração das mulheres é céu de outono. Limpo? Não, amistoso, mas sujeito a tufões. Abraçada nele, ela pediu. Você me dá a foto? Que foto? Aquela, do Tsurumi, onde o sujeito se jogou. Por que? Porque você parece um rio, de uma cidade remota, onde as pessoas brincam e se matam, muito longe. Outras vezes, está mais para afogado e até parece realmente um brasileiro. Dá ou não dá? Não dou, que o rio é meu. Ela duvidou. É sério. Não acredito, Ichiro, não acredito que você não vai me dar essa foto. Não vou. Então pode ir embora. Ele riu. Ela levantou da cama para o chuveiro. Ele foi na padaria, trouxe o pão, fez o café. Ela ainda fechada no banheiro. Ichiro pôs a mesa e enfeitou um copo longo com uma complicada rosa de papel, construída meticulosamente com guardanapos dobrados. Ela demorava. Mais tempo do que o normal. E ele começou a sofrer. A ficar sem graça. Deslocado. Um medo sutil. Os próprios sapatos se mostravam muito pequenos, o peito largo demais, o nariz pouco incisivo, os olhos... tão diferentes dos olhos dela. Lutava para estar à vontade. A casa ganhava ares estrangeiros, de outra civilização. Ele rastreava os detalhes, os objetos, na garganta um sentimento natural encharcando os afluentes exóticos. Vontade de ir embora e de ficar. Teve a certeza, num instante, de que ela não ia aparecer. Só quando ouvisse ranger o portão, o sininho dos ventos, o cachorro do vizinho. Devia estar fumando, sentada no ladrilho, esperando a deixa. Exatamente como da outra vez, mesmo que não houvesse mais sininho, nem cachorro, nem vizinho.
Quando Ichiro abriu a porta do banheiro, ela batia as cinzas dentro do bidê, conferindo o relógio. Encarou a amiga de frente, segurando o olhar como faziam as pessoas e ele, francamente, achava horrível, agressivo e invasor. Ela abaixou a cabeça, sem explicações além do próprio vazio, incomunicável narciso, margem oposta, detonada e sem salvação. À mostra, a penugem da nuca, mas nem isso adiantou. Você ia me deixar lá esperando pra sempre, por que?, ele perguntou, de raiva. Porque. Só porque. E era um jeito próprio dela, de dizer: é assim mesmo que eu sou.
Não foi pé chato, joanete, disritmia, pistolão, nem diabetes. Algumas assimetrias, um quase nada, vai que os fusos horários, oriente, ocidente, alguma falta de diplomacia. Foi o que ele viu. Da vez anterior, quando ela fez isso, Ichiro quase morreu de dor. Agora a alma passeava com modos de origami pela loucura e o perdão dos trópicos. Desdobrável, ia se reinventando, reerguendo e construindo -- garça, raposa, qualquer dia, dragão.
Saiu na rua e era como se bordejasse, atado às costas de uma enorme tartaruga marinha, a mesma que carregou uma vez um pescador para ser imortal no fundo do mar, na condição de para sempre se guardar submerso. Fábula contada e recontada desde criança. Contra os males daquela e doutras pandoras metropolitanas, ele se reservava, oh infinita paciência, o segredo do pescador Urashima: o tempo, com todos os segundos e anos e séculos que iam devorar um a um aqueles cabelos compridos. Andava e ia se acostumando, refluindo entre as marginais, com a foto do Tsurumi no bolso, o Tietê a seus pés e a alma perfumada de cerejeiras em flor.
verônica couto
nov./2004
Esse texto foi escrito pela verônica a partir da foto acima que tirei em 97 quando estava no Japão. Achei o texto lindo, apesar de apontamentos do João Silvério Trevisan sobre um certo "racismo". Ela não fez por mal, é claro. A sensibilidade do texto, para mim, supera tudo isso.
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