a million parachutes

for us

31 outubro 2004

:: kafkaniano

“A simples possibilidade de escrever cartas deve ter provocado – sob um ponto de vista meramente teórico – uma terrível desintegração de almas no mundo. É, com efeito, uma conversação com fantasmas (e para piorar não somente com o fantasma do destinatário, porém também com o do remetente) que se desenvolve nas entrelinhas da carta que se escreve, ou ainda em uma série de cartas, onde cada uma corrobora a outra e pode referir-se a ela como testemunha. De onde terá surgido a idéia de que as pessoas podiam comunicar-se mediante cartas? Pode-se pensar em uma pessoa distante, poder agarrar-se a uma pessoa próxima, tudo o mais fica além das forças humanas. Escrever cartas, contudo, significa desnudar-se diante dos fantasmas, que esperam isso avidamente. Os beijos por escrito não chegam a seu destino, são bebidos pelo caminho pelos fantasmas. Com este abundante alimento se multiplicam, com efeito, enormemente. A humanidade percebe-o e luta por evitar isso; e para eliminar no mais possível o fantasmagórico entre as pessoas e conseguir uma comunicação natural, que é a paz das almas, inventou a estrada de ferro, o automóvel, o aeroplano, mas já não servem, são evidentemente descobertas feitas no momento do desastre, o bando oposto é tanto mais calmo e poderoso, depois do correio inventou o telégrafo, o telefone, a telegrafia sem fios. Os fantasmas não morrerão de fome, e nós em troca pereceremos.”

Parábolas e Fragmentos e Cartas a Milena de Franz Kafka. Págs. 208-9, Ed. Ediouro., Tradução de Geir Campos.