a million parachutes

for us

08 março 2004

:: song #1

há uma comoção austera em se receber presentes. mesmo quando são tão antecipados, ainda nos pegam de surpresa alguns detalhes que mesmo com nossa perspicácia, não conseguimos prever de todo. o correio tocou a campainha às 9 horas da manhã, eu já sabia que era para mim porque o carteiro da vizinhança normalmente passa de tarde e normalmente não recebo nada além de impostos e malas diretas.

o som da caixa dizia que havia uma outra dentro. tomei cuidado em abrir, mas como havia muitas fitas adesivas acabei perdendo para a ansiedade e fui rasgando. quando percebi, havia destruido parte do endereço. sabia que tinha guardado o endereço numa agenda, mas a possibilidade de perder o endereço me acovardou. tomei a mesma serenidade e restitui todas as letras do remetente. foi a primeira vez que prestei a atenção nas letras e como eram verdadeiras letras de menina. aquelas formas imperfeitas me disseram algo muito humano, mas não sabia bem o quê..

a caixa contida era bem menor que contigente. era densa também. desfiz os elásticos e abri a tampa florida: a fita prometida, um cartão pequeno e uma carta. infelizmente não pude ouvir a fita porque me desfiz de todos os aparatos analógicos. a carta me entreteu até o meu trabalho onde consegui passar o conteúdo da fita para um cd.

fiquei pensando em como os suportes mudam nossa relação com o mundo. li a carta e nele vi muito além do que havia sido escrito. imaginei ela escrevendo com suas letras de menina, hesitanto no acento do meu nome, insegura com tantas palavras e idéias sem poder articulá-las em folha lisa e tinta. falta de prática, talvez. circulava o número 1 que era primeira de muitas que pretende gravar. justificou a falta de data com a vontade de ser eterna. e me deu essa sensação de eterno ao ver o "i" de sua assinatura muito semelhante aos "is" da minha infância. talvez, em épocas remotas, eu tivesse o costume de fazer "is" assim.

dobrou com imprecisão em 8 e com a ajuda do peso da fita pressionou o suficiente para que tomasse seu lugar.

ouvi a fita com um pouco de hesitação também. conhecia algumas músicas, mas a maioria era interrogação. gostei de todas. abusou ao colocar nina simone que é como um tiro de misericórdia. não chorei orgulhoso que sou. mas o que me causou mais comoção foi ler e ouvir o cd ao mesmo tempo. o mundo me soou encantando, como se pudesse ter compreeendido com exatidão o que representavam as letras, melodias e aquela letra de menina.

guardei a carta na caixa e continuei ouvindo o cd-fita. pensei que o mundo fosse feito desses pequenos detalhes e que eram tantos que poderiam caber numa caixa. e enquanto ouvia belle and sebastian, ela era pessoa mais bonita do mundo.