a million parachutes

for us

11 fevereiro 2004

:: cartas

eu reli todas as suas cartas antigas
e entendi muita coisa diferente.
pensava que suas letras redondas e laçantes,
sua falta de cuidado em terminar as linhas
e desenhos de esferográficos
eram só brincadeiras para passar menos tempo no papel
e deixar as cartas menos ralas que telegramas.
pensei ter lido telegramas, sempre.

e sempre me foi aborrecido saber sobre seus laços
ou seu sonho de ter entrado no mackenzie.
creme para as mãos, meias com desenhos da hello kitty,
programas da mtv e chocolates com menos calorias.
reli todas as suas cartas antigas e percebi que não falava de calorias.

envelopes impecáveis, a letra mais cuidado no envelope
para que os correios não se engassem porque você não se enganava,
você tinha planos e arquiteturas. você nem precisava mandar cartas,
mas mandava assim mesmo. para acabar aquela coleção de papéis de carta
que deixavam você com cara de menina e não de mulher.

e eu perdi o hábito de responder. e você foi perdendo a vontade de mandar.
e perdeu a vontade de escrever também.
e perdeu a vontade de que não enganessem o meu endereço.
e eu perdi seu endereço novo.
e você esqueceu de me ligar para dizer o seu endereço novo.
e eu então reli as suas cartas antigas
e entendi muita coisa diferente.

entendi que era para eu ter o cuidado em responder tanto quanto
você tinha de escrever. mas não era para ser descarado,
porque ambos éramos pessoas difíceis. e agora mais velhos, ainda mais.
entendi que era para que eu guardasse seu endereço novo
porque se precisasse, podia mandar eu uma carta ao invés de uma resposta,
porque você também queria responder cartas, com o mesmo cuidado
das pessoas que lhe enviaram. mas que eu não seria o único,
mas o mais esperado, porque eu sabia de seus laços,
de seu creme e de suas meias, dos seus videoclips
e da sua vontade de ser um pouco mais bonita

para mim.

[2002]