a million parachutes

for us

15 maio 2003

:: os anjos

aparecida era uma anja, mas não parecia uma.

andava de golinha em vodka e não dizia quem estava em sua guarda. comprava revistas de moda e dizia que nada daquilo tinha a ver com anjos. seus caracóis eram irritadiços, armavam-se para cima feito chifres, mas jurava que era coisa de nosso senhor. apesar de ter um corpo médio, era dona de mãos extremamente delicadas que não representavam a vida dura que levava de empregada doméstica. por isso que todos acreditavam em sua anjelicalidade.

dificilmente usava branco. gostava dos tenis coloridos e tinha coleção de meias que comprava semanalmente no largo da concórdia. às vezes, olhava pro céu, meio desiludida por não terem vindo buscá-la ainda. olhava para as meninas que acreditavam e dizia:

-- há muito para fazer nesta terra nefasta! vão estudar, suas vadias!

e soltava gargalhadas contagiantes. as meninas nunca revelaram de onde aprendiam tantas palavras deselegantes, mas aparecida também nunca contava onde a maioria encontrava seus namorados. era um criatura estranha. quando hesitava em jogar futebol (era goleira de primeira) dizia que iria cuidar de suas asas e descansar. já fazia um tempo que aparecida não andava tão entusiasmada, até os palavrões deixou de usar. todos pensaram que foi o namorado bandido que a largou.

-- nem. foi eu que larguei, eu sou anja, eu posso fazer isso sem me machucar.

e foi num dia como hoje que aparecida sumiu. fazia um eclipse lunar, todas as garotas preparavam para assistir e fazer um relatório para a aula de ciências. aparecida fez sucos e sanduíches. e foi dormir. no dia seguinte, já não estava mais lá no seu quarto. suas roupas também não. um bilhete: o eclipse me levará.

procuraram por muito tempo, mas nada. disseram que voltou para casa. mas ela nunca disse onde era sua casa. então o telefone toca:

-- voltei!

era aparecida. disse que estava por aí, tentando ser anjo. as meninas reconheceram mas não acreditaram. anjos não existem.