a million parachutes

for us

13 dezembro 2004

:: O Farol

Na estação de trem havia muita correria. Márcio conferiu as passagens e a plataforma. O trem estaria pronto às 14h30. Procurou na multidão que se movia, um lugar fixo, um banco para poder descansar. Conferia de quando em quando o grande painel que dizia quando chegavam e quando saíam os trens. Lia todos esses nomes de cidades procurando algum que lhe fosse familiar. A voz interna da estação lhe educava a fala, o sotaque. Suas roupas enganavam, mas seus olhos não: era a primeira vez que passava por ali e procurar por significados não é coisa de quem é conviva do lugar.

Uma mulher sentou-se ao seu lado. Colocou a bolsa sobre o colo e conferiu as passagens. Márcio percebeu que estava chegando porque o bilhete já estava picotado. Ela tirou um livro muito antigo, olhou em volta e o viu. Sorriu por educação, voltou ao seu livro e descansou as costas no moldar do encosto do banco. Márcio a observou por alguns segundos mais, de relance. Pensou se ela era a típica mulher londrina, quando a voz da estação falou o do nome do que parecia seu destino. Voltou-se ansioso para o grande painel, mas não encontrou hora ou local que lhe indicasse plataforma. Ficou ainda mais nervoso. Resolveu perguntar a mulher ao lado:

-- Por favor...

Ela virou-se solicita. Ele lhe mostrou o bilhete.

-- É esta a plataforma correta?

Ela respondeu que sim e que pontualmente o anúncio de embarque era feito 20 minutos antes.

-- Está cedo. Não se preocupe, há atrasos, sim, na Inglaterra.

Ele sorriu de agradecimento e perguntou por quem esperava.

-- As malas... quer dizer os baús. Como não tinha malas grandes, trouxe baús e os homens da companhia ferroviária deixaram por último no carro bagageiro. Disseram-me que me avisariam quando levassem para fora da estação.

-- E por que espera por aqui?

Ela achou graça.

-- Não gosto de multidões, mas estação de trem é um lugar muito diferente, um lugar de passagem. Ninguém fica por aqui além de seus funcionários. Aqui é o lugar fixo do tempo que passa. Assim como eu que vou me embora daqui a pouco. Gostaria só de me sentir fixa, um pouco. E você, por aqui está aqui?

-- Estou indo para uma cidade na costa oeste, vou atrás de um farol que me é importante.

-- Então conhece o interior da Inglaterra?

-- Não, é a minha primeira vez aqui. Vou atrás de um farol que li em um livro que me afetou há tempos atrás.

Ela guardou o livro na bolsa.

-- Por que um farol é tão importante?

-- Na época, comovi-me pelos personagens, mas hoje em dia só me lembro da descrição do farol. Quero reler o livro por lá. Tenho em mim a lembrança de como me afetou e um enredo básico. Não me deti a detalhes ou não incorporei. Quero saber se vai ser muito diferente.

-- Uma busca?

-- É, uma busca.

-- Não é muito de fazer buscas, não?

Ele se encabulou.

-- Conheci um farol há tempos atrás. Ficava numa praia que tinha um porto muito pequeno. Soube que hoje em dia não há nem pescadores. Por lá moravam famílias que visitavam esse farol e davam manutenção. Minha mãe me disse uma vez que eu adorava passear por lá. Mas não me lembro. Fico imaginando se eu fui feliz por lá, já que não há lembrança que ficasse. Assim como eu penso se há felicidade ou coisa parecida em ficar viajando de trem quando há aviões. Ou se a minha filha se interessará por livros ou por viagens como a sua.

O olhar dela se perdeu na multidão. Voltou-se a ele e perguntou:

-- Conhece o funcionamento de um farol?

-- Nunca vi um em vida ou não me lembro de ter visto realmente. Tudo que sei vem de filmes, livros e enciclopédias. Acabo inventando um para mim com todas essas informações. Invento as linhas, mas me faltam os detalhes, as ferrugens, as necessidades.

-- Inventar é importante. Senão como passaríamos o tempo? A minha filha quando era pequena inventava jogos em dobraduras de papel, esperando que a hora da escola chegasse. Eu inventei de ficar aqui sentada e você inventou uma viagem por causa de uma busca. A invenção acaba dando em outras coisas que a gente não inventou. Os inventores do farol nunca imaginaram que cairiam em desuso e que outros dariam outro sentido ao que se chama farol.

-- É estranho que muitas das coisas que conhecemos já tiveram outra função ou que terão outras que nem imaginamos.

-- É sim. Esse livro que carrego foi um caderno de um amigo e hoje me é um livro.

Mostrou a ele. Era um caderno velho, cheio de rabiscos, textos curtos e desenhos a mão.

-- Olhe este desenho. Parece um farol. Ele disse.

-- Para mim sempre foi um poste. Mas vou me lembrarei do que disse.

A voz da estação anunciou o destino de Márcio e no painel ambos viram que chegou a vez.

-- É a sua chamada.

-- Posso saber o seu nome?

-- Woolf. Sra. Woolf.

-- Muito prazer em conhecê-la e obrigado pelas informações.

-- Não há de quê. Posso saber de onde vêm?

-- De São Paulo, Brasil.

-- São Paulo... Bem-vindo a Londres!

Ambos riram.

-- Em São Paulo não há praias.

O homem da ferroviária veio e lhe informou que os baús estavam no carro. Ela lhe deu gorjeta, virou-se para Márcio e disse:

-- Não é preciso praia para se ter um farol.

E ela se foi. Márcio ficou ainda alguns minutos no banco esperando pela última chamada. Observou bem a estação e seus passantes. Levantou-se, embarcou e inventou de que chegaria logo.

Márcio Yonamine dez 2004

p.s. esse foi o último exercício da oficina literário que estou fazendo. hoje é o último dia também da oficina.